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A Ponte do Inferno

  • Foto do escritor: Blandine R-da
    Blandine R-da
  • 1 de abr. de 2024
  • 19 min de leitura



Capítulo 1: Tom


O Jo, o Tom, a Alice e a Margot vieram diretamente da França para apreciar a cidade do Porto e celebrar o aniversário da Alice. Tinham passado a noite a festejar e estavam a caminho do apartamento que alugaram para o fim-de-semana. Durante o dia, tinham passeado ao longo da Ribeira e descobriam recantos escondidos com escadas complexas e sinuosas. Apesar do tempo instável, não deixaram de apreciar as fachadas coloridas. À noite, aproveitaram as festas agitadas. Começaram a soprar as velas da Alice no topo de um terraço onde os coquetéis eram todos feitos com vinho do Porto, depois continuaram num pub chamado Casa do Livro, onde a pista de dança era cercada por uma antiga biblioteca, com um globo de espelhos no teto. Depois de aproveitarem o concerto de samba que lá acontecia, terminaram a noite numa discoteca.

Naquela noite, enquanto tentavam encontrar o caminho mais eficiente de volta ao Airbnb, tornou-se cada vez mais difícil orientar-se nas ruas mal iluminadas. Sob os efeitos do álcool – o Tom concentrado na sua trajetória, a Alice e a Margot rindo alto – o Jo tentava entender as indicações do GPS. Desde que saíram do lounge onde tinham experimentado a charcutaria portuguesa, o tempo tinha piorado. O vento, mais forte, deu lugar a uma chuva fina e nebulosa. Seguindo as instruções do Jo, eles entraram, como previsto pelo mapa digital, na Ponte Dom Luís I. Em forma de arco de metal, era a imagem turística do Porto. Permitindo a passagem do bonde, os carris cruzavam sob uma estrutura metálica onde os candeeiros de luz ofereciam uma iluminação fraca, projetando círculos amarelos no chão. Ao entrar na Ponte, a Alice continuou a rir sob a pressão das rajadas de vento. Ela estendia os braços para se deixar levar pelos movimentos do ar, fingindo voar com ele. Balançando entre o passeio e os carris, ela chamava a atenção da Margot, que ria sem preocupar-se com o frio.

A noite parecia aprisionar a sua liberdade infantil num espaço fora do tempo. Sem estrelas à vista, o brilho da lua estava encoberto pela densa neblina, uma brecha no reino das trevas. O panorama oferecido pela altura da Ponte mostrava a cidade, cujas luzes se dispersavam pelas colinas do rio como tochas acompanhando as escadas do Inferno.

O Tom, por sua vez, não confortado pela efervescência do Douro, sombrio e profundo, que corria sob os seus pés, nem pela a escuridão, sentiu a sua caixa torácica contrair-se com o nascimento do medo, uma emoção ainda mais intensificada pela bebida que corria nas suas veias. Quanto mais avançavam na Ponte, mais os demônios cravavam as suas garras na sua alma. Enquanto as raparigas voltavam a comentar sobre os atributos masculinos de um rapaz com quem tinham dançado na discoteca, a Margot desenhando nádegas no ar, o Tom seguiu os passos do Jo, mais seguros. Para afastar a sua imaginação atormentada, ele esforçou-se para seguir as linhas e círculos de luz:

— Está muito frio, disse ele com os dentes cerrados.

— Disse-te que ia fazer frio em fevereiro, respondeu o Jo, com o nariz dirigido para a tela do telemóvel.

— Não sejam estraga-prazeres, é só chuva. Aquele rapaz com as calças de ganga esquentou-me muito, continuou a Margot, ainda mais extrovertida que o normal.

— Quanto tempo falta? perguntou a Alice, depois de confirmar com seriedade os comentários da Margot.

— Cerca de dez minutos, só precisamos atravessar a Ponte, alguns metros e estaremos no apartamento, respondeu o Jo. Não te preocupes, meu amor, vai ficar tudo bem, continuou ele, virando-se para o Tom para tranquilizá-lo.

— Isso é tão fofo, disse a Alice, formando um coração com as mãos. Ei! Olhem para mim! Se eu salto, saltam comigo e morremos juntos, não é poético? disse ela, equilibrando-se no corrimão da Ponte, os braços estendidos para o céu, imitando a grande cena do filme Titanic, que tinha visto centenas de vezes sem parar de chorar.

“Vai, salta para ver”

— Ah, ah, não tem graça, respondeu a Alice.

— A quem estás falando assim? perguntou o Jo.

— Quem disse "salta para ver"?

— Ninguém, disse a Margot.

— Eu juro que sim, alguém acabou de dizer-me para saltar.

— Tu precisas realmente parar com a droga, querida, está deixando-te muito doida.

— Diga essa que molha as cuecas cada vez que dá um bafo numa ganza.

— Mas pelo menos eu não sou uma vítima eterna da minha vida.

— O quê? Podes repetir o que acabas de dizer? disse a Alice com desafio.

— Vamos lá, ela ficou chateada outra vez.

— Esperem, há apenas um minuto estavam fantasiando sobre o rabo de um rapaz, e agora vão discutir por uma voz imaginada na mente da Alice? interveio o Jo, virando-se para elas enquanto o Tom aproveitava para aproximar-se dele, ainda preocupado com a situação geral.

— Margot, às vezes odeio-te! exclamou a Alice.

De repente, as luzes dos candeeiros começaram a piscar em intervalos regulares, e então, gradualmente, com uma rapidez crescente. O vento soprou sob os arcos da Ponte, provocando um grito vindo do Além. Perturbando o que ia tudo no seu caminho, as luzes apagaram-se. "Corram!" gritou um deles. Não importava quem tinha dito, todos seguiram a ordem, correndo como se a morte estivesse os perseguindo, as pernas impulsionadas pelo vento, o coração pulsando como um motor. Então, de repente, tudo voltou ao normal, as luzes acenderam-se novamente, o vento acalmou. Parando no seu balanço, cada um retomou o fôlego para recuperar uma respiração natural.

— Uau! Foi tão assustador!

— O que acabou de acontecer? perguntou a Margot.

— O que foi aquilo? continuou a Alice, sem fôlego devido aos pulmões cheios de tabaco e cannabis. — Jo, o que estás a fazer? Precisamos de descer da Ponte, é por ali.

O Jo tinha parado bem antes delas. A vários metros de onde estavam, ele estava virado na direção oposta, impassível.

— Jo, vens ou não? gritou a Margot para abafar o som do vento.

Mas o Jo não se mexia.

— Jo, o que está acontecendo? Onde está o Tom? Disse a Alice, com as mãos ao redor da boca para ser ouvida.

Ele não respondeu, também não se virou para encará-las.

— Vem! ordenou a Margot a Alice.

Com mais vontade de avançar para sair da Ponte do que voltar atrás, as duas mulheres desceram para juntar-se ao Jo. Quanto mais se aproximavam, mais ouviam a sua voz gritando: "Tom! Tom, onde estás?"

— Jo? O que está a acontecer? repetiu a Alice ao chegar à sua beira.

— Eu não vejo o Tom, ele desapareceu.

— Mas não, ele não desapareceu, interveio a Margot. Ele não poderia ter desaparecido, estávamos todos juntos. Ele pode ter corrido mais rápido que nós, aquele cobarde.

— Espera, eu ligo-lhe, disse o Jo.

Pega no celular que tinha na mão, ele procurou o número do Tom na agenda antes de ligar. As raparigas ouviram os bipes distantes prolongaram-se durante uns segundos e depois veio o correio de voz.

— Ele não atende.

— Que se foda! exclamou a Margot.

— Sugiro que fiquemos à espera, disse o Jo.

— Esperar? Mas não sabemos se ele está atrás ou à frente de nós. E eu, preciso realmente sair desta Ponte horrível. Eu digo, vamos esperar no apartamento, insistiu a Alice.

— Não, precisamos de encontrá-lo, afirmou o Jo. Venham.

Os três continuaram o caminho de volta, refazendo todo o percurso que tinham feito a correr. Foi só depois de alguns minutos que avistaram uma sombra no chão. O Jo então precipitou-se, as raparigas logo atrás.

O Jo gritou, um grito doloroso, arrancado do fundo da garganta, cortando o ar dos pulmões, quebrando as batidas de seu coração. Um grito que um ser humano só pode produzir sob o impato de uma dor sem nome: o corpo do Tom estava caído no chão, uma faca cravada no peito.

— Oh meu Deus! soltou a Alice, unindo as mãos em choque.

— Porra! gritou a Margot.

— Tom! Tom! continuou a gritar o Jo agonizante, sacudindo o corpo daquele que amava como se fosse voltar à vida.

Os seus olhos permaneceram abertos, olhando para o nada sem expressão, sem alma; tão frio quanto a chuva que explodia no seu cadáver, tão frio quanto o medo que o havia torturado pouco antes de morrer. O seu sangue, ainda quente, escorria pelo chão, seguindo o caminho da correnteza levada pela tempestade.

Eles não perceberam que a alguns metros deles havia uma criatura gigantesca, uma cabeça de búfalo com chifres e pelos tão rudes e negros quanto as trevas. Ele os observava, deleitando-se, divertindo-se com a situação.

— Jo, levanta-te, precisamos de ligar para alguém, balbuciou a Margot.

Mas a Alice já tinha tomado a iniciativa. Digitando o número de emergência, ela ativou o alto-falante na tela coberta de chuva. O Jo, por sua vez, ainda estava deitado sobre o Tom, chorando, sem querer deixá-lo.

— Por que? Quem fez isso? ele repetia.

A criatura musculosa continuava os observando.

Do outro lado da linha, um chiado indicou que alguém atendeu:

— Estou! Você ouve-me? O meu amigo foi assassinado, afirmou a Alice para ser ouvida apesar do vento, da chuva e do pânico.

Ninguém respondeu.

— Você ouve-me? insistiu.

— Talvez não tenhas rede, interveio a Margot, que se aproximou para ouvir a conversa.

— Estou!

Um novo chiado, uma voz rouca, como um sussurro que acaricia a nuca, que gela o sangue: "Nenhum deles sobreviveu, nenhum vai sobreviver, nem sobreviverá. 82, 53, 24, 95. Depois o ciclo recomeçará quando a Ponte se erguerá de novo." - Uma respiração larga - desligação - o bip da linha cortada.

A Margot e a Alice olhavam-se perplexas, o terror no fundo das entranhas. A Alice, paralisada e tremendo, deixou cair o telemóvel que se quebrou numa poça d'água.

— O que foi isso? entrou em pânico a Margot.

— Não pode ser, é só uma piada, só pode ser uma piada, continuou a Alice.

— Meninas.

— Como assim uma piada, Alice! Estás a ver que o Tom tem uma maldita faca no corpo! Os próximos somos nós.

— Meninas.

— Não comeces, Margot, tenho a certeza de que há uma explicação lógica! continuou a Alice, tentando acender a sua ganza apesar da tempestade.

— Meninas.

— O que foi?! gritaram juntas na direção do Jo.

— Olhem.

Elas não tinham prestado atenção. O Jo tinha-se levantado e apontava com o dedo para os carris ao longo dos quais o sangue do Tom escorria, transformando-se em letras, para escrever: "A morte está para aquele que recusa o medo."


 




Capítulo 2: Alice


 

A Alice voltou a beber. Afogando-se na garrafa de vodka que havia cuidadosamente escondido na mala durante a noite, ela cambaleava ainda mais do que quando saíram da discoteca. O Jo, por sua vez, não conseguia parar de chorar no ombro da Margot, que tentava consolá-lo: "Porque?", "Porque ele?" ele continuava a soluçar.

— Precisamos de encontrar alguém, Jo, vai ficar tudo bem.

— Deixar... deixar... o corpo dele... lá embaixo..., tentava articular.

— Alice, vem!

Mas a Alice estava tão desconectada da realidade que a voz da Margot ecoava como se estivesse dentro de um aquário. Os candeeiros de luz multiplicavam-se numa dança psicadélica, o reflexo das luzes formava um arco-íris amarelo, azul e verde. A Alice não via mais nada, nem mesmo os carris do bonde que se destacavam na escuridão.

— Sabes que estás-te a magoar sozinha, minha querida!

— Não és minha mãe! murmurou ela, com a boca pastosa com o álcool e o cannabis.

"O que tua mãe diria, Alice?"

— Deixa-me em paz!

— Minha querida, para de beber, não estás a ajudar. Precisamos de encontrar alguém.

— O que a minha mãe tem a ver com isso?

— Estás a delirar totalmente. Jo, precisamos de seguir em frente.

— Como eu vou viver sem ele? dizia.

— Para de te queixar, pareces uma garota! articulou a Alice antes de tomar mais um gole de vodka.

"Puta!"

— Eu? Sou uma puta?

— Ninguém te chamou de puta, disse a Margot. Mas é bom que te dês conta. Em vez de te lamentares-te, Alice, deverias pensar acerca da mensagem. O que dizia? "Nenhum deles sobreviveu...", não sei o quê, e os números, o que eram mesmo? 24, 95. Falou de um ciclo, não foi?

— Vão todos para o caralho!

— Ótimo, isso ajuda muito.

— O que isso importa! De qualquer forma, vamos todos morrer aqui, interveio o Jo.

— E o que aquele recado no chão queria dizer: "A morte está aquele que recusa o medo"?

— Que noite de merda! Que aniversário de merda! E a pensar que a minha família queria organizar-me um jantar numa cabana nas montanhas, e eu estou aqui com vocês dois, perdidos, e o Tom está morto!

"Garota mimada de ricos!"

Agora eles conseguiam distinguir a iluminação do Jardim do Morro, uma luz de esperança às portas do Inferno. No entanto, a confusão só aumentava: a Margot, que havia soltado o Jo, correu para apoiar a Alice, que estava a desacelerar o passo.

— Eu não preciso de ajuda!

" Nunca precisaste da ajuda de ninguém. Não é, Alice? És boa demais para isso!"

— Não, eu não preciso da ajuda de ninguém!

— Acalma-te, minha querida, senão deixo-te aqui.

— Com quem estás a falar assim? Margot, espera, acho que as vozes na cabeça da Alice voltaram, percebeu o Jo.

"Ninguém nunca te amou."

A Alice desabou nos braços da sua amiga.

— Nunca me amaram!

— Foda-se, Alice. O Tom acabou de morrer e tu vens-nos incomodar com as tuas ilusões idiotas!

— O Tom amava-te tanto, Jo. Tens tanta sorte.

— Sorte! Sorte! Ele morreu! explodiu o Jo.

"Nem sequer és capaz de ser uma amiga fiel."

— Eu nunca fui boa amiga.

— Não temos tempo para as tuas tonterias. Jo, pensaste na mensagem?

— É claro, não é? O Tom teve medo da Ponte, e ele morreu, aparentemente ele não foi o primeiro e não será o último. É isso que significa.

"Vão te deixar sozinha aqui."

— Não me deixem sozinha!

— Ninguém vai deixar-te sozinha, Alice.

Rapidamente, o vento levantou-se, ainda mais intenso, soprando por todo o comprimento da Ponte. Tão poderoso que era impossível não sucumbir à pressão. Sob a chuva rodopiante, os três amigos foram impulsionados para trás com tanta força que a Alice, apesar do apoio da Margot, tropeçou e caiu de barriga para baixo nos carris do bonde. Novamente, as luzes começaram a piscar. Toda a estrutura da Ponte tremia, vibrava, até que um pedaço de metal se soltou e voou, batendo, saltando e atingindo a Alice no meio do peito. Uma dor lancinante a possuía a ponto que um grito gutural saiu das profundezas das suas entranhas.

— Alice, estás bem? preocupou-se a Margot.

Mas ela não estava bem. Ela gritava de dor e o vento continuava a provocar o inferno. Cada vez mais forte, o Jo e a Margot tiveram que agarrar-se ao corrimão para não serem levados. "Estás com raiva de quem, Alice? De ti mesma ou dos outros?"

Ela continuou a gritar contra as rajadas do vento quando a dor se espalhou por todo o seu corpo, desde a raiz dos cabelos até as pontas dos pés.

— Alice, levante-te! gritou o Jo para ser ouvido.

Ela contorcia-se em todas as direções, lutando contra a besta que tomava o controle da sua alma, ardente, abrasadora. Apesar dos espasmos que a atravessavam, a jovem levantou-se com dificuldade, uma mão apoiando o peito. Oscilando de um lado para o outro, gotas na sua testa brilhavam, misturando-se com a umidade da chuva no rosto.

— Queima! gritou a Alice

O Jo e a Margot, ainda lutando contra a pressão do vento, não podiam largar o corrimão para ir até ela sem correr o resgo de pôr-se em perigo. "Nunca soubeste fazer as coisas corretamente, Alice. Sempre te escondeste atrás das tuas conquistas, mas no fundo, és fraca."

— AAAHHHHHHRRRGGG!

Os pés da Alice acabaram de pegar fogo.

— Jo! Olha! sinalizou a Margot.

O Jo viu. Querendo ajudar a sua amiga a todo custo, afastou-se do parapeito, mas foi em vão. Mal deu um passo à frente e o vento jogou para trás, empurrando-o contra um dos candeeiros de luz. A Alice continuava a gritar, as chamas subiam pelas suas pernas, atingindo agora os seus joelhos.

Ao longe, à luz dos candeeiros, a sombra da criatura de chifres havia retornado, observando como um espectador passivo.

— Jo, faz alguma coisa! insistiu a Margot.

— Não consigo!

A Alice, no meio dos carris, continuava a pegar fogo. "AH, AH, AH", a voz ria na sua mente. Uma risada louca, descontrolada e glacial. Agora, as chamas haviam tomado todo o seu corpo.

— Eu odeio-te! gritou antes de avançar dolorosamente, penosamente, em direção ao Jo e a Margot.

Por um momento, eles pensaram que ela conseguiria alcançá-los para que pudessem ajudá-la, mas parou a alguns metros deles, passou a perna em chamas por cima do parapeito e deixou-se cair. O seu corpo ardente caiu, iluminando a penumbra, clareando a superfície do rio. Foi só quando ela mergulhou nas profundezas do Douro que se apagou como uma faísca. O seu corpo havia desaparecido.

O vento e a chuva então acalmaram-se, as luzes estabilizaram-se.

O Jo e a Margot, recuperando a sua liberdade de movimento, correram para olhar as águas escuras onde a Alice havia saltado, mas não viram nada. A superfície estava tão lisa quanto uma estrada asfaltada.

— Alice! eles chamaram em sintonia.

— Foda-se, Jo, isso não pode ser verdade! Alice!

De repente, o Douro começou a recuar. Estava esvaziando-se, empurrando as águas em direção à cidade. O rio, ao sair de seu leito, inundou os cais, as ruas e as escadarias sinuosas. Depois de alguns minutos, o rio estabilizou-se.

— Que loucura é essa? gritou o Jo.

A Margot não teve tempo de reagir. O rio voltou a mover-se. Foi então que uma onda se formou ao longe, crescendo, cada vez mais colossal. Precipitou-se então em direção à Ponte. Tomados pelo medo, os dois amigos correram para o lado oposto para afastarem-se, embora soubessem que isso não adiantaria de nada. A onda aproximou-se e parou. A mesma voz rouca e gélida que pouco antes haviam ouvido sair do telemóvel da Alice ressoou. A onda vibrou: "1882, com as suas mãos eles ergueram a Ponte, mas com a sua desgraça ela os levou. 1953, com o seu orgulho aventuraram-se, mas na Ponte, o acidente ensinou-lhes que o perigo está a um passo."

A mensagem transmitida, a onda diminuiu para se alojar com calma e suavidade no seu leito. Tudo estava acabado.

A Margot chorava, sentindo um grande vazio dentro de si. Ela não sabia mais o que fazer, paralisada pelo desespero de não encontrar nenhuma saída confiável para todo esse horror.

— Margot, Margot, olha!

Virou-se para o Jo, que apontava para o chão. Letras desenhadas pelo fogo diziam: "A morte está aquele que se submete à raiva."


 




Capítulo 3: Margot e Jo


 

Ouvia-se o som da chuva a fluir no passeio. O Jo e a Margot avançavam lentamente ao longo da Ponte. Estavam encharcados da cabeça aos pés. Nada mais fazia sentido. Tinham perdido o Tom e agora a Alice. O que aconteceria agora? Que opções tinham? Ambos imersos num estado de transe, cada um perguntava-se como seria possível sair dali, um ou ambos, vivos desse inferno.

— Jo, acho que precisamos de resolver o enigma.

— Que enigma?

— As mensagens, a voz...

— Margot, estou com medo.

— Eu também, Jo.

Um relâmpago cortou o céu e o vento soprou. O eco marcou o início de uma chuva torrencial. Apenas os candeeiros de luz e a estrutura metálica eram nitidamente visíveis, mas o resto perdia-se atrás da cortina de munições vazias. A Margot espirrou antes de continuar:

— Jo, esses não são acidentes. A Alice tinha razão, deve de haver uma explicação lógica para tudo isso.

— O que bebemos esta noite?

— A sério, Jo, é nisso que estás a pensar?

— Porque eu acho que fomos drogados. Isso explicaria todas essas alucinações.

— Como explicas as mortes do Tom e da Alice então?

— Elas fazem parte das nossas alucinações. Será que não passamos a noite só nós dois?

— Isso é impossível, Jo.

A Margot espirrou novamente, sem perceber que um muco sangrento acabara de espatifar-se no chão. O Jo passou o braço em volta dos ombros dela e a consolou:

— Vai ficar tudo bem, vais ver, vamos sair desta. Olha, estamos quase no fim da Ponte. Em algumas ruas estaremos no apartamento e poderemos esquecer toda esta história.

Enquanto acelerava o passo, a Margot foi tomada por uma tosse surpreendente e forte o suficiente para fazê-la vomitar.

— Estás bem?

— Sim... sim, está... está tudo bem, articulou entre duas tosses. Só senti frio com toda essa chuva e vento. Precisamos concentrar-nos no enigma.

— Sim, já disseste. Mas isso não vai nos ajudar, estamos quase lá.

— Espera...

— O que foi?

A Margot parou abruptamente.

— Ele disse: "1882, com as suas mãos eles ergueram a Ponte, mas com a sua desgraça ela os levou. 1953, com o seu orgulho eles aventuraram-se, mas na Ponte, o acidente..." isso deve ter algum sentido.

— Estás a pensar demasiado nisso, para.

— Precisamos de voltar para atrás.

— Estás maluca ou que? Estamos a um passo da saída.

"82, 53, 24, 95. Depois o ciclo recomeçará quando a Ponte se erguerá de novo ", foi o que a voz disse.

Ela espirrou novamente.

O búfalo havia reaparecido, mas nenhum deles percebeu. Ele continuava a observa-los, fumaça a sair das suas largas narinas, os seus chifres brilhando sob a fraca luz da lua.

— Precisamos entender, Jo. Devemos voltar para onde a Alice e o Tom morreram, devemos encontrar pistas.

— Estás a querer dizer que queres atravessar toda a Ponte de novo?

— Jo, é a única solução. Não vou embora antes de entender. Os nossos amigos estão mortos!

— Margot, querida, estás fora de ti. Esqueça esta história e vamos em frente, por favor.

— Não, Jo, acabamos de perder os nossos amigos. Eu quero saber porquê. Porque nós, porquê eles, porquê esta noite, porquê aqui.

— Não serve para nada.

Mas ela não ouvia, virou-se e começou a voltar pela Ponte. O Jo correu atrás dela para alcançá-la. O búfalo, de braços cruzados, os observava com um ar divertido, os seus chifres tremiam com os grunhidos que serviam como risadas. A jovem quase corria, apressando o Jo, que tentava em vão detê-la:

— O que esperas encontrar exatamente?

— Eu não sei, mas se sairmos vivos desta Ponte, quero poder contar o que aconteceu.

O fim da sua frase ficou inaudível quando uma nova tosse a sufocou, obrigando-a a curvar-se para cuspir. Foi só então que ela percebeu que a sua saliva estava cheia de sangue.

— Margot, estás bem? Vem, precisamos de voltar agora.

Decidindo não dizer nada sobre o seu estado, ela retomou o controle:

— Não é nada, não te preocupes. Vamos continuar.

E então ela seguiu determinadamente o seu caminho.

Chegando a meio caminho entre a saída e o lugar onde a Alice saltou da Ponte, Margot não conseguia mais controlar os espirros e a tosse. O Jo, vendo o sangue cobrir as mãos da sua amiga, continuou insistindo para voltar, no entanto, era igualmente absurdo pensar que a Margot mudaria de ideias. Ele não entendia qual era o objetivo dela. Ela estava convencida de que as mensagens eram um enigma, enquanto para ele, eram apenas um aviso, um mau presságio. Ele sabia que a prioridade era salvar-se. A sua divergência era impossível de solucionar.

— Querida, não estás bem. Tens que ir ao hospital. Estás a cuspir sangue, olha!

— Não vou embora até entender qual é o problema! Entendes? gritou ela. Então, ou segues-me, ou os nossos caminhos separam-se aqui.

O Jo não teve escolha senão ficar com a sua amiga.

Eles quase tinham alcançado o meio da Ponte quando a Margot cuspiu um pedaço de carne do nariz.

— Foda-se, o que é isso! exclamou o Jo.

— Esqueça, estamos quase a chegar.

Mas a Margot caiu de joelhos sob o peso de uma nova tosse. O som que saía de sua garganta era grosso, rouco. Então, transformou-se, ela engoliu agora. Como um gato com uma bola de pelo, estava com dificuldade para respirar. A sua respiração estava a ficar cada vez mais seca, mais preocupante. "Margot, levante-te!" gritava o Jo, agitando-se ao redor dela. "Respira!" não parava de repetir. De repente, outro pedaço de carne apareceu na garganta da Margot, que permanecia de quatro no meio dos carris do bonde. Este foi empurrado das profundezas das suas entranhas por uma nova tosse, agora saindo do orifício. Com a boca cheia, Margot articulava como podia: "socorro!". O Jo correu até ela. Olhou para o rosto deformado da sua amiga: os seus olhos estavam a sair das órbitas, os lábios espumavam-se e abriam-se cada vez mais, as veias explodiam na testa. Ele não viu outra solução senão puxar a carne. Agarrando a extremidade que saía da boca, o fio de carne desenrolou-se sobre o alcatrão. À medida que o jovem puxava, os intestinos se derramavam interminavelmente. A Margot, apesar de sufocar, gritava de dor. O Jo agora havia extraído mais de um metro de carne. Incapaz de deixar a sua amiga neste estado, ele convenceu-se de que o melhor era continuar, mas isso tornava-se interminável. Arruinada pela dor, a Margot contorceu-se, deitada no chão, toda a sua cavidade queimava, como lâminas de barbear que teriam sido soldadas umas às outras. Logo, sob a pressão dos intestinos saindo da sua boca, a Margot cuspiu a maioria dos dentes. Ela chorava. "Acabou, querida", disse o Jo para acalmá-la. De fato, avistava o fim da carne. Ele puxou pela última vez e então acabou. Dois metros de intestinos estendiam-se agora ao longo dos carris. A Margot estava sem fôlego. O Jo aproximou-se dela para ajudá-la a levantar-se. Mas no momento em que ele segurou o seu braço, os intestinos começaram a mover-se. De boca aberta diante do fenômeno, permaneceram impassíveis. De repente, o fio de carne avançou em direção a Margot e prendeu-se em volta do seu pescoço, levantando-a para pendurá-la nas barras de metal que sustentavam os cabos do bonde. A Margot contorcia-se tentando soltar-se. Em vão. Toda a estrutura começou a vibrar. O Jo, atônito, ficou parado sem saber o que fazer. Esta última começou a esticar-se, a subir. A Margot, ainda pendurada pelos seus próprios intestinos, subia, subia, subia. Quase alcançando as nuvens, o vento soprou. Soprou tanto que o metal se inclinou com um estalido forte sobre o Douro. Rapidamente, um chiado encheu a noite em eco. Somente o Jo então percebeu que vinha dos alto-falantes conectados aos cabos do bonde: "2024, da sua imaturidade, atravessaram a Ponte, mas a morte roubou-lhes a inocência. 2095, da sua memória, a história continuará." Jo continuava a observar a Margot suspensa, as suas pernas pedalando no vazio. Esta última sentiu o abraço da carne apertar-se ainda mais em volta do seu pescoço, e então em questão de segundos tudo acabou. A Margot não estava mais respirando. O seu corpo inerte pendia como um boneco de pano. O vento atravessou novamente o corredor da Ponte e a estrutura metálica retomou sua forma inicial numa larga vibração. Os intestinos soltaram o seu aperto e o cadáver da mulher caiu no chão. Foi então que eles serpentearam pelo chão e formaram as seguintes letras: "A morte é para aquele que se impede de avançar por a sua frustração."

 

O Jo caminhava até à saída da Ponte, com os passos arrastados. Nem mesmo o desejo de sobreviver a todo esse desastre era forte o suficiente para lhe dar energia para fugir. De qualquer forma, o que ainda tinha? Acabara de perder o amor da sua vida e as suas duas melhores amigas. O que ele contaria na França, à família dos falecidos? Ele mesmo não estava certo se teria a vontade de: voltar para o apartamento sozinho, rever as coisas delas, tomar o avião sentado ao lado dos assentos vazios. As nuvens agora eram tão espessas que a lua estava escondida, sem brilho, sob a profundidade da noite. Parou de chover, e o vento havia desaparecido. A temperatura estava quase suave, ou até a esquentar enquanto o Jo avançava no passeio. Gotas de suor brilhavam no seu rosto quando ele avistou os últimos metros que o separavam da terra firme. O Porto havia voltado a ser pacífico, uma cidade onde se podia imaginar os habitantes a dormir tranquilamente até o amanhecer que não demoraria a chegar.

Após um longo suspiro desesperado, o Jo foi interpelado por uma silhueta destacando-se na densidade da penumbra. Era escura e difícil de identificar. Quanto mais ele se aproximava, mais distinguia a forma gigantesca, peluda, cornuda, bestial, do búfalo cujas narinas exalavam vapor. O Jo parou abruptamente, a dois metros da criatura. À flor da pele, o sistema emocional do jovem estava completamente desarranjado, ele não sabia mais o que sentir entre o medo, a raiva, a tristeza... Tudo estava confuso. Nesse momento, nada mais fazia sentido. Pouco importava. Que ele morresse se tivesse que morrer, que vivesse se tivesse que viver. De qualquer maneira, ele esperava que isso acontecesse rápido e sem dor.

Apenas uns segundos depois, ele percebeu que a criatura segurava uma caçadeira com os braços estendidos, apontada para ele. O Jo não se moveu, tão-pouco entrou em pânico. Aceitou o que estava por vir. Era a fatalidade. Foi então que a criatura abriu a boca e disse: "Então, o que achaste deste passeio turístico? Aprendeste algo sobre a história da Ponte?" O Jo não respondeu. "Então, como todo bom guia que se preze, vou concluir. A Ponte Dom Luís I foi construída entre 1880 a 1888. Alguns pedreiros, em 1882 precisamente, morreram sob o peso das obras. Em 1953, um casal de ricos herdeiros atravessava a Ponte num dos primeiros automóveis e atingiu uma criança de oito anos, perderam o controle do carro e afogaram-se no Douro. Em 2024, quatro amigos enfrentaram a Ponte depois de uma noite cheia de álcool e drogas. Em 2095, a Ponte desabará durante o feriado nacional do dia 25 de abril, fazendo uma centena de mortos. Depois será reconstruída." O Jo não podia acreditar no que via, nem no que ouvia. O búfalo continuou: "Agora, só resta a decidir." Ele ainda apontava a sua arma em direção ao peito do Jo. "Viver ou morrer, tens que escolher. Escolher entre a morte ou a culpa." O Jo fez sua escolha e a detonação rompeu a escuridão.


Blandine De Almeida

 

 
 
 

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Blandine Roux De Almeida

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