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(Quase) BANAL

  • Foto do escritor: Blandine R-da
    Blandine R-da
  • 21 de mar. de 2024
  • 6 min de leitura

Atualizado: 29 de mar. de 2024




Parte 1:


Adivinho a luz do dia por detrás das minhas pálpebras e o canto dos pássaros gradualmente chega aos meus ouvidos. O meu despertador mostra as seis horas da manhã. Uma metade da minha mente ainda fixada no meu último sonho, a outra já a trabalhar, levanto-me e deslizo os pés dentro dos chinelos. Depois de acariciar os gatos que esperam pacientemente atrás da porta, desço até à cozinha. Começa então o tango da manhã: 1, tentar alcançar a comida, 2, preparar as tigelas, 3, distribuir tudo isto no meio de miados e gatos que se mexem aos meus pés. Finalmente, liberto destes amores ingratos, preparo o café e instalo-me num estado de coma profundo até que o Senhor Relógio da-me a ordem de ir preparar- me. Um verdadeiro tirano, esse!

Depois de ter passado alguns minutos na casa de banho, escolho cuidadosamente a minha roupa do dia. É importante notar que é necessário aliar estilo elegante e estilo descontraído: um blazer e calças de ganga/sapatilhas funcionam muito bem juntos. Deixo-me convencer por uma maquilhagem natural e revitalizante para não parecer tão cansada. Por fim, pronta para a batalha, encontro-me na rua, avançando, às arrecuas, até ao carro. Instalada, ligo-o e dirijo-me para o trabalho. Tudo se torna então uma questão de nuances. Cinzento a perder de vista. No espelho retrovisor, vejo as linhas brancas a sucederem-se e a hipnotizarem-me. O semáforo ao longe fica verde; mas à medida que me aproximo: laranja, vermelho, paro: verde, recomeço.


Parte 2:


Chegando ao trabalho, reduzo a velocidade para estacionar. Dirijo-me então até a entrada do estabelecimento onde empurro a porta com o ombro. Os degraus da grande escada sucedem-se por baixo dos meus pés até à sala dos professores. Lá, encontro os meus colegas a quem desejo um bom dia. TLLLIIIINNNGG: ele ainda está aqui! Apresso-me porque estou um minuto atrasada. Correndo em direção à sala de aula, quase tropeço ao cruzar-me com os alunos. À medida que se aproximam da sala, os seus sorrisos desvanecem-se para dar lugar ao cansaço. "Bom dia, professora!". Geralmente, as aulas correm bem. Alguns agem como Lucky Luke, pondo a mão no ar tão rápido que a sua própria sombra, enquanto outros perguntam-se como fizeram para chegar a este ponto. Apesar das intempéries como: "Fulano, o telemóvel!", "Fulano, cala-te!", costumo ficar satisfeita ao pensar que a maioria deles retiram pelo menos vinte por cento da aula. Além de ensinar, o que mais gosto são os intervalos para fumar com os colegas. Os alunos não podem imaginar o quanto falamos mal deles, mas nós aliviamos a nossa consciência pensando que eles nos fazem passar por coisas piores. Quando chega às cinco e meia instalo-me no carro, sinto-me emocionalmente esgotada.


Parte 3:


Depois de um dia de trabalho agitado, estou muito contente por voltar a casa com o meu homem e os dois gatos, que consideramos como nossos filhos, obviamente. Eu acho que, na escala dos melhores momentos do dia, este fica logo depois do mais apreciado: quando vou para a cama. De facto, são os únicos momentos em que o tempo parece parar de verdade. Encontramo-nos então para contar o nosso dia, muitas vezes cheio de peripécias e aventuras fantásticas. Rimos, partilhamos os nossos medos e ansiedades, bem como as nossas alegrias. Muitas vezes é a oportunidade de usar a minha frase favorita: "Na verdade, isso faz-me lembrar que...". Adoro. As nossas conversas podem demorar uma eternidade. No entanto, se o amo, é principalmente por esses momentos, mas também porque ele aprecia tanto a solidão quanto eu. Penso até que é um elemento fundamental do nosso casal. Então, depois de nos isolarmos na nossa bolha pessoal, chegamos a acordo sobre a refeição da noite. Para ser mais precisa, é ele quem decide com ele mesmo e prepara. Eu fico ao lado dele, na cozinha, a apoiá-lo nas suas ideias malucas para criar novas receitas de massa. Saboreando a comida, acabamos imergidos numa ficção televisiva. No final do filme, tenho que ir para a cama para começar tudo de novo no dia seguinte.


Parte 4:


Chega o momento em que fico sozinha comigo mesma, aquele em que a realidade e a ficção já não têm fronteiras. Então mergulho progressivamente no abismo do meu subconsciente. Inicialmente, as minhas preocupações estão ligadas ao trabalho: imagino o que deveria ter feito ou dito melhor em determinado momento do dia e começo a lamentar e a sentir culpa; prometo a mim mesma que vou corrigir o erro ou fazer melhor na próxima vez. Como isso acaba por atormentar-me demasiado, decido que é mais fácil não me importar. É então que divago para outros horizontes, tanto os mais perigosos como os mais bonitos. A porta do meu mundo fantasioso abre-se para deixar-me entrar nas águas da minha imaginação. Às vezes vejo as personagens do meu romance evoluindo na minha mente, o que me faz rir, às vezes até me traz lágrimas; outras vezes, invento outras histórias em que sou a personagem principal. Sinto-me então possuída pela amplitude dos meus devaneios e isso assusta-me. Mas isso é meu, não posso rejeitá-lo, tenho em mim uma besta indomável que me domina. Assim começa a catarse.


Parte 5:


Ao chegar à sala dos professores, encontro os meus colegas a quem desejo um bom dia. TLIIINNNGG: “Estás atrasada, um minuto será descontado do teu salário”, diz-me o olho incrustado na parede. Apresso-me e dirijo-me a uma porta que se abre sobre um ecrã transparente. Depois de atravessá-lo, encontro-me prisioneira de uma realidade onde o branco estende-se até onde a vista alcança. Começo a fazer a chamada. À medida que pronuncio o nome dos alunos, vejo-os aparecer um por um num ecrã a 360 graus. "Bom dia, professora!" Os sorrisos, ausentes nos seus rostos, há muito que deram lugar a olheiras e a uma tez acinzentada. Geralmente, as aulas correm bem. De facto, a falta de expressão e emoção indica-me que eles estão a armazenar a quantidade de informações registadas nos nossos programas de cálculo de desempenho. Portanto, constato que, para a maioria deles, a barra das competências atinge mais de 50%; enquanto outros, infelizmente, permanecem muito abaixo e serão excluídos no próximo mês. Apesar das perturbações como "ERROR 404" ou "Zona sem rede", os alunos têm a obrigação de estar presentes, aconteça o que acontecer. É um grande alívio não ter mais que os excluir por mau comportamento. O que mais gosto, além de ensinar, são os intervalos em que todo o corpo docente deve respeitar o tempo de preparação das aulas, avaliado pelos nossos programas de cálculo de desempenho. Quando chega às cinco e meia, sinto-me emocionalmente esvaziada.


Parte 6:


Depois de um dia de trabalho cheio, estou muito contente de voltar a casa e encontrar o meu robô de limpeza e os dois sphinx (parte gato, parte leão), que considero como os meus filhos, obviamente. Na escala dos melhores momentos do dia, estes vêm logo a seguir ao mais apreciado: aquele em que vou para a cama. Na verdade, são os únicos momentos em que o tempo parece não observar-me. Então, ordeno ao robô que faça uma pausa para lhe contar o meu dia. Acho agradável que ele não me critique por expor os mesmos detalhes, cronometrados ao minuto, dia atrás dia. É frequentemente a minha oportunidade de usar a minha frase favorita: "Na verdade, tenho que fazer...". Adoro. A minha lista de obrigações pode demorar uma eternidade. Então, depois de o ter reiniciado, chegamos a acordo sobre a refeição da noite. Para ser mais precisa, é ele quem decide consigo mesmo e prepara. Eu cronômetro. Saboreando a minha refeição enquanto assisto às notícias do governo, acabo por ir para a cama para começar tudo de novo no dia seguinte.


Parte 7:


Chega o momento em que fico sozinha com o meu holograma, ou seja, aquele em que a mente e a tecnologia já não têm fronteiras. Então, mergulho progressivamente no abismo do meu subconsciente que ele me projeta. Inicialmente, envia-me imagens do que deveria ter feito ou dito melhor em determinado momento do dia e começa a culpar-me, depois insulta-me e faz-me prometer que vou corrigir o erro ou fazer melhor na próxima vez. Como isso acaba por atormentar-me demasiado, ele muda de estratégia para torturar-me melhor. É então que o meu holograma me faz divagar para outros horizontes, tanto os mais perigosos como os mais belos. A porta para o meu mundo fantasioso abre-se então para me deixar entrar nas águas da minha imaginação. Às vezes vejo as personagens do meu romance evoluir na minha mente, o que me faz rir, outras vezes até me traz lágrimas; outras vezes, o meu holograma projeta-me em outras histórias em que sou a personagem principal. Sinto-me então possuída pelo amor e pela paz que já não encontro há muito tempo. Mas isso é meu, não posso rejeitá-lo, tenho em mim uma programação indomável que me domina. Assim começa a catarse.

 

Blandine De Almeida

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Blandine Roux De Almeida

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