A Página em Branco
- Blandine R-da
- 29 de mar. de 2024
- 11 min de leitura

Era uma vez, na Alta Áustria, o Elias, um estudante de vinte e oito anos, que ainda morava com os pais, sonhava em igualar-se ao autor Leo Perutz. Infelizmente, a falta de autoconfiança e o medo haviam impedido a realização do seu desejo. Assim, todas as noites, sem perder a esperança, forçava-se a uma rotina de escrita, por mais improdutiva que fosse.
Nesta época do ano, a cidade de Hallstatt, aninhada nas montanhas de Dachstein, estava por tornar-se a atração turística do Natal: as luzes iluminariam as casas, a igreja seria esculpida no gelo e o mercado respiraria a magia.
Na noite do dia 20 de novembro, enquanto as casas, cobertas por uma tela branca, refletiam as luzes sobre o Lago Hallstättersee, o Elias voltava para casa. Depois de bater as botas no degrau de madeira, beijou a sua mãe: "Boa noite, mãe." Ao tirar o gorro, o jovem sentiu as suas orelhas corarem com o calor do lar, onde uma mistura de fragrâncias estimulava o seu paladar. Seria pão de mel, caramelo ou canela? A resposta não tardou. "Tem rabanada!" revelou a sua mãe. Enquanto o Elias foi guiado por o seu faro até à sala, o seu pai, sentado junto à lareira, o cumprimentou de longe: "Tudo bem, filho?"; o crepitar na lareira marcava o ritmo de uma música retrô tocada pelo toca-discos, acompanhando a queda dos flocos de neve atrás dos vidros embaciados. O Elias, já com a boca cheia, articulou com dificuldade um "sim".
O Natal não era a sua festa favorita. Ele preferia muito mais o Halloween porque, para ele, era o período mais propício à criação. Cada ano, saudava o entusiasmo das pessoas e especialmente da Lena, a sua melhor amiga extravertida por terem o disfarce mais extravagante possível. Na verdade, a imaginação coletiva oferecia tanta diversidade que tornava-se uma verdadeira fonte de inspiração para ele. Por outro lado, ele via o Natal como sendo a época do irracional absoluto, e considerava que as leis inerentes a esse evento eram só fumo e espelhos que aprisionavam o mundo inteiro num espaço de hipocrisia, abundância e autoquestionamento insalubre. Via-se obrigado a ver novamente aqueles que não via durante o ano, tendo que suportar o primo racista, o tio bêbado e as suas piadas obscenas, a avó homofóbica que detestava... e principalmente... gastava-se uma fortuna. Tudo isso para celebrar o nascimento de um hippie que ajudava aos mais necessitados. E no entanto, no dia seguinte, os habitantes de Hallstatt enfeitariam as ruas com ornamentos, pintariam cores e arabescos, encheriam o centro comercial e colocariam presentes por baixo da árvore, fazendo crer, como bons soldados da sociedade de consumo, que eles foram trazidos pelo próprio São Nicolau. Até o gato, encolhido na sua cama perto da janela, emitiu um "miau" de aprovação como se estivesse aderindo ao pensamento.
Saciado de sabores e análises universais, o Elias tranquilizou a sua mãe sobre a sua presença no jantar, então subiu para o seu quarto, como um boxeador entrando no ringue. Neste caso, o seu oponente não teria luvas de boxe, mas duas agulhas que faziam TIC TAC e uma folha tão branca quanto a tela de um pintor. Ele então sentou-se por baixo do halo de luz da escrivaninha e iniciou o primeiro round.
Apesar dos múltiplos caminhos oferecidos pela vida, o Elias nunca foi capaz de renunciar à escrita. Um ano de direito, dois anos na Escola de Belas Artes, parar para trabalhar e depois voltar para a faculdade, tudo isso o subjugou a uma existência de ilegitimidade. Então, quando ele ficou paralisado diante da página em branco, aquela mesma página com a qual ele passava uma hora todas as noites, o sentimento de fracasso voltou a pairar sobre ele. Escreveu algumas palavras antes de amassar o papel e lançou-o por cima do ombro. Ao alisar uma nova página, ele lembrou do que sua mãe lhe havia contado um dia: "Quando nasceste, eu soube imediatamente que serias especial. Tiveste tanta dificuldade para abrir os olhos, como se as luzes do hospital cegavam-te demais para fazer o esforço. Mas então conseguiste. Além de ter um olho cinza à direita e outro verde, vi em ti essa singular inocência. Tudo isso fazia de ti o ser mais autêntico que conheci." Mas era apenas a palavra de uma mãe. Não havia nada a fazer, quanto mais os minutos passavam, mais a tão esperada iluminação negava-se em aparecer. Então, com a habitual sensação de derrota, o Elias juntou-se aos pais para jantar.
Pensando que a sopa lhe havia dado um novo ânimo, ele tentou voltar ao trabalho. Em vão. Amaldiçoando a página em branco, que o Elias agora chamava de "olho de Satã", ele foi dormir, esperando que o dia seguinte fosse diferente. Mas como todas as noites, o sono demorava a chegar à medida que via os seus pensamentos girando na sua mente. Na tela, um garoto de três anos entrava no pátio da escola e escondia-se por baixo do coberto, evitando que os outros alunos notassem a sua heterocromia; mas, apesar das suas orações, ele não conseguia esconder-se à vista de todos; e aquilo que mais temia acabou tornando-se inevitável. Por anos a fio, ele foi vítima de tantas zombarias que destacou-se em apresentações de fim do ano, participar aos clubes ou até mesmo sair com rapazes eram apenas fantasias. Sempre que tentava, era consumido pela ansiedade e pelas dúvidas. Foi imaginando o rosto de antigos colegas com orelhas e narizes pontudos, dentes tão afiados quanto os de um dragão, que o Elias adormeceu nos braços do Medo.
Na manhã seguinte, enquanto o Elias tomava o café numa chávena em forma de Pai Natal, recebeu uma mensagem da Lena:
"É a abertura do campo de patinagem hoje!" Ela nunca perde uma, Lena. Que preguiça de encontrar os pequenos idiotas da época (que agora tornaram-se grandes idiotas).
"Não posso, desculpa", ele respondeu.
Na época em que a conheceu, o Elias, para proteger-se da sua vida social imposta pela escola, criou uma imagem de "rapaz perfeito". De fato, ter olhos bicoloridos dava-lhe a constante sensação de ter uma etiqueta, onde estava marcado "anormal", colocado na testa. Então, desde que entrou no ensino médio, foi fundamental esconder a sua diferença por trás de notas excelentes, um estilo de vida excelente e até mesmo uma namorada excelente. Só a Lena, é que conseguiu ver quem ele realmente era, permaneceu na lista (tão curta quanto um selo) das pessoas de confiança. Mas o Elias, cansado de ter que desempenhar o papel de excelência perpétua, fonte de discussões entre os seus pais e ele, e depois entre os seus próprios pais, acabou capitulado. A solução apresentou-se como uma evidência: mandar foder a todos. Assim, quanto menos expunha-se ao julgamento dos outros, melhor se sentia. A resposta à sua mensagem não demorou, e a Lena, fiel à sua determinação, escreveu:
"A menos que te tenhas transformado em um gnomo, não te dou escolha." "É sábado, merda!". Eu conheço a Lena, começa com uma ida ao campo de patinagem e termina numa discoteca gay. Ela está convencida de que: um, eu melhoro a minha sociabilidade; dois, vou encontrar o homem dos meus sonhos. Bem, eu tenho que evitar.
"Não posso, tenho que escrever", o que era verdade, aliás, se eu quiser manter o meu ritmo.
"Queres dizer, ficar a olhar para uma folha de papel A4 por horas esperando que ela faça a conversa contigo... não sejas idiota", ela respondeu. Bem, agora ela está a irritar-me.
Ele preferiu deixar a conversa suspensa antes de ir tomar banho. Com um pouco de sorte, ela desistiria. No entanto, no início da tarde, a campainha tocou, dando lugar à voz da sua mãe que gritou: "Elias, é a Lena!". Essa rapariga é tão persistente quanto um vampiro grudado no pescoço de uma jovem virgem. O Elias desceu até à porta onde a sua melhor amiga, com os cabelos tão translúcidos quanto as asas de uma fada, estava a espera:
— Oi! Então, vamos?
— Uh... tens a certeza que não queres beber nada primeiro?
— Anda, vamos perder a inauguração, vamos!
Forçado a aceitar, o Elias enrolou-se num cachecol e num gorro de lã e dirigiu-se para o campo de patinagem com a Lena. No caminho, enquanto os habitantes de Hallstatt penduravam guirlandas nas janelas, a Lena não parava de falar sobre um rapaz com quem fazia sexo, mas do qual, sobre tudo, não estava apaixonada.
Os momentos com ela eram sem dúvida os mais sinceros que o Elias já experimentara na sua vida. Ele, que tanto quis esconder as suas emoções, as aventuras contadas sem nenhum filtro por a Lena pareciam uma bolha de cristal na qual podia expressar a sua opinião sem sentir-se ilegítimo. Tanto é que assim, um dia, perdendo o controle da sua raiva interior, ele acabou magoando-a. Na verdade, enquanto os monstros do seu curso do ensino médio zombavam das suas maneiras afeminadas, a Lena acabou por o defender, o Elias acusou-a de constantemente querer salvá-lo com uma varinha mágica. Eles passaram então várias semanas sem dirigirem a palavra.
Chegando ao centro antigo composto por casas tradicionais e a igreja gótica, o estalido de seus passos os acompanhou até à cabine de aluguel de patins. Enquanto a Lena conversava com o gerente, o Elias lançou um olhar para a iminência do santuário que seria decorado durante o dia. Na pista de patinação, os habitantes de Hallstatt de todas as idades desenhavam ondas no gelo como se estivessem a rachar a alma de um anjo. Os cânticos natalinos, orquestrados por alto-falantes, ditavam o ritmo da multidão.
Mais tarde, o Elias, tenso e com um equilíbrio precário nos seus patins, deixou-se guiar por a sua melhor amiga. O ouro dos seus cabelos ao vento dava a impressão de que as asas estavam brotando nas suas costas; enquanto atrás, o Elias parecia mais um passarinho caído do ninho.
— Eu disse-te que deveria ter ficado em casa, Lena! Olha, até os adolescentes ali estão a rir-se de mim.
— Estás a dizer merda!
Mas ao mesmo tempo, o grupo de pessoas riu-se quando ele se agarrou à borda para não cair.
— Tudo bem, talvez um pouquinho, mas é normal cair ao patinar. Todo mundo cai uma vez ou outra, olha ele, disse ela apontando para uma criança de cinco anos cercada pelos pais.
Elias revirou os olhos em sinal de desespero. Ela sempre quer desdramatizar tudo.
Apesar do otimismo da Lena, o Elias, saturado depois de dar duas voltas na pista, indicou que esperaria do lado de fora, assumindo com dificuldade mais uma derrota.
Pouco a pouco, a neve começou a cair novamente e o jovem, apoiado à beira da pista de patinação, teve todo o tempo do mundo para observar os patinadores divertindo-se em família ou com amigos.
Ao longe, ele avistou um grupo de meninas vestidas de princesa, exceto uma, vestida de Quebra-nozes. Assim, o seu uniforme verde e vermelho contrastava com os vestidos cor de rosa. O Elias ficou ainda mais alerta quando uma das princesas a empurrou até fazê-la cair. O bando de grinaldas, rindo alto, viu-a levantar-se antes de empurrá-la novamente. Um instante depois, a menina afastou-se com a cabeça rebaixada e saiu do campo de patinagem para sentar-se num banco perto da igreja.
Foi nesse momento que Elias suspirou e seus dois estados de espírito começaram a chocar-se: Não, eu não vou vê-la! Vamos lá, olha para ela, ela precisa de ti. Eu disse "não" _ És um cobarde.
Não demorou muito para que a menina não conseguisse mais conter as lágrimas. Ao mesmo tempo, uma rapariga da sua idade vestir-se de menino, é normal que isso aconteça. Achas realmente no que estás a dizer? Isso já aconteceu comigo! Mas sim, é verdade, está certo, faça como eles! Não és melhor! E se eu for vê-la, o que então? Então explica-lhe. Explico o quê? Que o mundo nunca permitirá que ela seja quem deseja ser? _ Fazes como quiseres, mas vais arrepender-te.
Foi então, relutantemente, que ele foi sentar-se ao seu lado.
— O teu disfarce é muito fixe.
— Hum...
O vento então começou a soprar e os flocos de neve a girar.
— Gostas de patinar?
— Mais ou menos...
— Eu vi o que aconteceu no campo de patinagem. Não foi muito fixe, na minha opinião.
— As minhas amigas não me querem a mim porque eu não sou uma princesa.
— Nem todo mundo precisa ser uma princesa.
— Mas elas dizem que não é normal.
— Porque não é normal ser diferente?
A menina arregalou os ombros e o seu chapéu de Quebra-nozes oscilou levemente para frente.
— Não, mas às vezes eu sinto-me sozinha.
— Eu entendo...
A neve começava então a diminuir nas portas da igreja.
Ele olhou para o perfil da menina e notou uma lágrima formando-se no canto do seu olho. Vamos lá, Elias, mais um esforço!
— E se fosse um superpoder?
— O quê?!
Enquanto o Elias segurava a mão enluvada da menina na sua, os flocos de neve começaram a dançar ao redor deles.
— Olha ali, disse ele, apontando para a pilha de neve na frente das portas da igreja.
— O quê? Eu não vejo nada.
— Sim, olha bem. Estás a ver ali?
A menina franziu os olhos, mas ainda não viu nada.
— Não.
Então o Elias apertou mais forte a sua mão. Os flocos de neve, direcionados pelo vento como marionetes puxadas por cordas, tomaram a forma de um rato com um nariz pontudo e uma cauda curvada.
— Já está! exclamou a menina.
Num novo turbilhão, os flocos ergueram um soldado, e então a imaginação fez o resto. Conectados um ao outro, sem querer soltar as suas mãos, os espectadores viram os dois protagonistas duelarem com espadas. Aos pés da igreja, a batalha era intensa entre o rei dos ratos e o Quebra-nozes. Mas enquanto o soldado de madeira finalmente vencia o seu inimigo, um raio de sol aparecia para fazer brilhar a porta do edifício. Mil e uma luzes brilhavam na neve a ponto de os deixar deslumbrados. A menina, pasma, percebeu que o Quebra-nozes se tornava um príncipe de carne e osso.
— Olha, o soldado de madeira tornou-se um príncipe. Isso sim é um verdadeiro superpoder, não achas?
— Uau! Sim, mas ainda assim é a princesa que a gente mais gosta na história.
— Mas a princesa nunca conseguiria sair-se bem se não tivesse o seu corajoso Quebra-nozes para protegê-la. Ele é um guerreiro. Além disso, será que o rei dos ratos não é suficientemente mau e astuto para se disfarçar de princesa e enganá-lo?
— É verdade, ele poderia fazer isso, disse a menina pensativa.
— Sabes por que o Quebra-nozes torna-se príncipe?
— Não?
— Porque ele não tem medo de ser feito de madeira.
O seu rosto tinha uma expressão convencida quando ela arregalou os olhos:
— Uau...
— Disse-me, qual é o teu nome?
— Clara.
Foi então que os alto-falantes da pista de patinação começaram a tocar a famosa Valsa das Flores.
— Olha novamente, Clara, disse ele apontando para o espetáculo com o dedo.
Na neve, uma bailarina, com os braços em coroa, desdobrava o seu mais belo balé. Por um momento, o Elias e a Clara tiveram a sensação de que um cheiro de caramelo invadia as suas narinas e tudo se tornava cor de rosa e branco. O tempo parou; então a última nota de Tchaikovski ecoou.
Eles permaneceram ali, observando o monte de neve retomar forma e posicionar-se diante da porta da igreja, quando ouviram ao longe: "Ei, bicha, encontrou o seu Quebra-nozes!"
— Volta para tua toca de rato miserável! respondeu a Clara.
A menina, radiante, sorriu largamente para ele:
— E qual é o teu nome?
— Ernst Theodor Amadeus Hoffmann.
— Bem, obrigada, Hoffy, disse ela afastando-se do calor que a mão do Elias lhe proporcionara. Sempre serás minha fada dragée, concluiu ela rindo antes de voltar para o gelo.
Elias ficou surpreso ao vê-la voltar para o grupo de meninas. Ele esperava vê-la desafiá-las, mas não, ele ouviu-a dizer: "Eu te perdoo, rei dos ratos, não é tua culpa ser malvado." Essas últimas palavras agiram sobre ele como uma tapa. No entanto, a Lena o trouxe de volta à realidade:
— Então, vamos?
— Para onde vamos? perguntou o Elias com alguns segundos de atraso, enquanto reposicionava a sua atenção na sua melhor amiga.
— Tomar um chocolate quente?
— Com prazer!
— Parece que tens uma nova amiga.
— Ou melhor, um encontro com Ernst Theodor Amadeus Hoffmann.
— Um grande homem, aquele.
— Acho que eles estão apresentando O Quebra-Nozes no teatro esta noite, estás interessada?
— Claro! Contém-se o que fizeram com meu melhor amigo!
O Elias e a Lena riram-se e dirigiram-se, braços dados, para a cafetaria da esquina.
No dia seguinte, Hallstatt estava vestida com as suas mais belas decorações de Natal, a ponto de a tela branca desaparecer atrás dos brilhos de luzes e cores.
Sentado junto à lareira, saboreando o café na sua chávena de Pai Natal, Elias observava o jardim de pinheiros. Ele então deixou-a em cima da lareira coroada de meias, e saiu com as botas nos pés. Chegando ao jardim, agachou-se. Por um momento, teve a visão de uma criança entre dois pinheiros. Vestida com um uniforme vermelho e verde, olhava para ele com um olho cinza e o outro verde. Ele pensou ter visto um leve sorriso formar-se no seu rosto. O Elias então traçou na neve: "Eu te perdoo". Ele não soube dizer se estava transmitindo a mensagem mais para si mesmo ou para seus próprios demônios. Mas isso não importava.
À noite, Elias sentou-se na sua mesa, mas desta vez, o medo e a raiva haviam-se dissipado. Com a alma mais leve, ele escreveu: "Era uma vez, num país onde viviam dragões e fadas, o Natal aproximava-se...".
No final das contas, o dia seguinte foi verdadeiramente um novo dia.
Blandine De Almeida
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