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O escritor

  • Foto do escritor: Blandine R-da
    Blandine R-da
  • 21 de mar. de 2024
  • 6 min de leitura

Atualizado: 29 de mar. de 2024




Gustave entrou na escuridão do seu escritório feito de madeira e antigas molduras. Uma variedade de livros revestia as paredes e sofás de couro estavam dispostos na entrada. Se dirigiu à imponente escrivaninha para deixar o jornal do dia. Sentando-se em sua poltrona, tirou um cigarro do seu maço e acendeu-o. Inclinando a cabeça para trás, ele deixou o fumo dissipar-se abundantemente no ar, aprisionando-lhe nos seus próprios pensamentos. Como todas as manhãs, Gustave derramou um pouco de Chivas no seu copo favorito, deu um gole e abriu o jornal que indicava a data do 25 de fevereiro de 1970, o dia do aniversário do seu pai. Deu outro gole: Feliz aniversário! pensou Gustave, que não pôde deixar de imaginar o seu pai encarcerado numa prisão americana.

O escritor havia crescido na Alemanha Nazista com seus pais que apoiaram a ascensão de Hitler. Ao contrário do seu pai, ele conseguiu escapar ileso do julgamento de Nuremberg. De fato, provou que só havia seguido as ordens de seus superiores hierárquicos e saiu impune entregando seus nomes. No entanto, ainda se sentia pouco orgulhoso por ter participado, de uma forma ou de outra, em inúmeros crimes. Por isso, o autor se esforçava de exorcizar memórias profundas por meio da escrita. Depois de ter lido algumas notícias, bebeu outra vez, apagou o cigarro para acender outro e começou a escrever:

 

"O cheiro do sangue, o cheiro da terra, o cheiro do suor misturado à poeira. O chão treme, o zumbido das bombas ensurdece-me. Corro ao longo da trincheira, não devo pensar na morte, deito-me na lama com minha arma em punho. A violência. O som das botas. Os mortos. Odeio a França, odeio os franceses...

 

Maldito pesadelo!... A minha cabeça está pesada e a minha boca está seca. Isso tornou-se recorrente desde que voltei das trincheiras em 1918. Dificilmente, levanto-me e vou direto para a casa de banho. Um pouco de água fria, o distintivo Waffen-SS colocado no seu lugar, o cinto apertado sobre o uniforme impecável. Desço as escadas para sair. Estou na Postdamer Platz, as ruas de Berlim já estão cheias de pedestres. Há um ar de paz e paraíso soprando. Desde que Hitler chegou ao poder, a esperança renasce. Podemos ver com orgulho que a economia está a ser recuperada, as lojas judias estão sendo boicotadas ou permanentemente fechadas; os desempregados encontram trabalho novamente e as mulheres voltam a ser as esposas perfeitas. Então, subo a rua em direção a Unter den Linden.

Como todas as manhãs, tomo um pequeno almoço no Labensart, onde já tenho minhas manias. Assim que chego, Jack serve-me um café. Desde que as SS estão em seu auge, eu, um nazista de longa data, fui promovido a detetive particular ligado à Ordnungspolizei, mais conhecida como "Orpo", a polícia SS.

— Jack, o jornal, por favor!”

 

— Caramba, as letras caíram de novo! Não é possível! Todos os dias, é a mesma coisa!” exclamou o escritor, pulando da cadeira. Começou a mexer na máquina de escrever com impaciência. Nunca conseguirei pegar aquele Gunther! Quando penso que o meu editor quer o trabalho para amanhã! Enquanto ele conseguiu arranjar o mecanismo, serviu-se outro copo de Chivas. Já que estamos nisso! Finalmente aliviado, Gustave voltou a escrever:

 

“— Então, Gunther, como está a progredir a tua investigação sobre o roubo de joias? perguntou Jack.

— Provavelmente judeus.

— Não fico surpreendido, esses nunca pararam de nos roubar.

Enquanto termino o meu café, um Mercedes preto para à minha frente. O homem dentro do carro não é outro senão o meu chefe, Oberführer Kurt Daluege, um loiro alto de sobrancelhas longas e bem desenhadas.

— Sobe, Gunther.

— Heil! cumprimento ao entrar no carro.

— Posso oferecer um cigarro, Gunther?

— Não, obrigado, Oberführer, não fumo.

— Vim vê-lo porque preciso que investigue um crime da maior importância. Tem de ser discreto, qualquer informação emitida pode ser um desastre. É isso que você quer, Gunther?

— Não, senhor.

— Escute, trata-se de Adolf Eichmann, um oficial da SS. Ele morreu em casa ontem à noite, foi encontrado estrangulado. Conto contigo para encontrar o assassino o mais rápido possível.

— Às suas ordens, Oberführer!"

 

"Estrangulado" ou "degolado", "abatido" talvez? pensou o escritor. O que agradaria mais ao leitor? Algo mais sangrento? "Degolado!" parece melhor. Espere um pouco... Gustave aproximou-se para ler a sua obra mais de perto. "Enquanto termino o meu café..." Hum, não. "No momento em que terminava o meu café..." Um pouco melhor. Vais ver, maldito nazista! Com esse pensamento final, o escritor voltou ao seu trabalho:

 

"No início da tarde, Daluege deixa-me em Unter den Linden, onde paro para almoçar. Enquanto relembro a cena do crime, acho que, em vinte anos de carreira, nunca havia enfrentado uma situação como aquela. O corpo de Eichmann foi encontrado no seu escritório, desfigurado pelo corte profundo na garganta. O mais estranho eram os cigarros "Cigarettes de Troupe" espalhados ao redor do cadáver. Não os via desde a Grande Guerra. Além disso, o assassino teve a audácia de deixar uma mensagem escrita com tinta vermelha perto do Eichmann: "Olha para ti". E aquele forte cheiro de uísque, o que fazia ali? Não havia garrafa ou copo na sala. Os meus pensamentos são interrompidos quando:

— Ei, Gunther!

— Josef!

Josef Mengele, que passa por ali, é um amigo que conheci num encontro do partido. Nazista desde sempre, Mengele era um médico extraordinário, especialmente interessado na diferença entre as raças. Um homem muito fixe!

— Então, Gunther, os teus contatos na SS, poderias me ajudar a encontrar cobaias, não é? disse com um cigarro na boca.

— Como assim?

— Sabes bem, Gunther, entendes o que quero dizer.

— Estás-me a pedir para enviar judeus para ti?

— Tudo o que podes conseguir.

— Vou ver o que posso fazer Josef.

— É para o bem do Reich, Gunther.

 

Os obuses explodem ao meu redor, os homens gritam de dor. Os meus sentimentos se confundem-se. Devo pensar na morte? No amanhã? Na minha mãe? No meu pai? Na trincheira, tudo está escuro...

 

Ao acordar, uma dor de cabeça lateja no meu crânio. Percebo horrorizado que são sete da manhã, então dormi desde a tarde anterior. TLLLIIINNNG. O telefone. Hesitante, pego nele.

— Alô! Gunther?

— Oberführer Daluege?

— Passarei para pegá-lo numa hora, temos um novo cadáver nas nossas mãos.

No carro, Kurt Daluege explica-me que se trata do mesmo assassino de Adolf Eichmann. A cena do crime é a mesma. Exceto que desta vez, é Josef Mengele.

— Ele foi assassinado ontem à tarde no seu consultório. Encontramo-lo ainda com a roupa de trabalho, foi a sua esposa que nos ligou ao perceber que ele não tinha voltado para casa. Parece que o conheces, Gunther.

— Encontrámo-nos uma ou duas vezes, digo, preocupado.

Chegámos à Alexanderplatz, em frente ao consultório do Mengele. Quando descobrimos que o meu amigo degolado, encontramos também os mesmos cigarros "Cigarettes de Troupe" no chão, o mesmo cheiro de uísque e a mensagem: "Olha para ti."”

 

— A refeição está quase pronta!

— Sim, querida, ouvi, estou a ir! gritou Gustave para a sua esposa. Eu nunca vou conseguir terminar! Tenho de chegar até ao fim, até ele morrer. Morra, Gunther!

 

“Passei o dia a investigar para obter o máximo de informações possível sobre os dois homens. Ao voltar para o consultório médico, a agenda de compromissos deu-me o nome do último paciente do Dr. Mengele, que morava em Postdamer Platz, assim como eu. Parece que o conheço, pois ele é um camarada da SS com quem me encontrei na Noite das Facas Longas. Mas depois das oito horas, decido voltar para casa e contatá-lo no dia seguinte.

 

O sangue corre ao longo da trincheira, não vejo mais ninguém.... Estou em Postdamer Platz. A escuridão da noite deixa entrever os contornos de uma fachada repleta de janelas. Atravesso a rua para ficar em frente de uma porta de carvalho maciço e entro na casa... O campo de batalha já não existe... O corredor de entrada está imergido na escuridão. Avanço silenciosamente, meus passos abafados pelo espesso tapete... Quando ouço alguém aproximar-se de mim, escondo-me atrás do móvel que separa a entrada da escada. Nesse momento, uma mulher sai da cozinha e posiciona-se no primeiro degrau:

— A refeição está quase pronta! grita na direção do andar de cima.

— Sim, querida, ouvi, estou a ir! responde uma voz masculina.

Espero que a mulher retorne à sala ao lado para subir as escadas... Tudo acabou, o som infernal parou e estou vivo. A França venceu, na violência e no ódio.... Lentamente, tiro a faca do meu bolso. Quando chego lá em cima, abro a porta. Um homem está sentado à sua escrivaninha, digitando na máquina de escrever. Na penumbra, vejo os livros que revestem as paredes e os sofás de couro. O escritor ergue a cabeça para encarar-me. Ele é moreno, como eu.”

— Olha para ti, disse Gunther em sussurro.

— Gunther!

O escritor levantou-se de um salto e precipitou-se sobre ele. Os dois homens começarão a lutar violentamente, deixando cair o cinzeiro cheio de pontas de cigarro. A máquina de escrever também caiu no chão com um som metálico.

— Nunca vais ganhar, Gustave!

— Eu sempre fui melhor que tu!

— É o que pensaste durante a Noite das Facas Longas? Quando assassinamos o pobre Olaf.

A batalha causou estragos no escritório do autor. Gunther lançou a faca, mas quando Gustave lhe deu um golpe na cabeça, a arma caiu no chão. Então, nas profundezas da noite, um deles conseguiu recuperar a lâmina e, com um movimento circular do braço, cortou a garganta do outro.


Blandine De Almeida

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Blandine Roux De Almeida

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